Ontem, 16 de Maio de 2007, na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, discutiu-se a questão da responsabilidade do Estado pelos danos causados pelas recentes explosões do paiol de Malhazine. O debate foi orientado pelo Prof. Doutor Gilles Cistac e pelos advogados Filipe Sitói e Alice Mabota. O Prof. Cistac, meu ex docente de Direito Administrativo, excelente, diga-se, defende que no actual quadro constitucional é impossível responsabilizar o Estado pelos danos causados pelo Paiol. Segundo ele, para que tal ocorra, tem que se pensar numa responsabilidade do Estado pelo risco, onde se desenharia um cenário em que o Estado seria chamado à responsabilidade independentemente de culpa. Reparem que o pronunciamento do Prof. Cistac acaba por se confrontar com uma das postagens por mim publicadas, atinente a possiblidade de responsabilização do Estado pelos danos causados pelas explosões do Paiol
Nova reflexão sobre a matéria:
1. O nº 2 do artigo 58º da Constituição da República de Moçambique, estabelece o seguinte e passo a citar: "O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei."
2. Ora, como se pode facilmente constatar, é necessário que o acto praticado seja ilegal para chamar o Estado à responsabilidade. Este quadro dificulta o chamamento do Estado à responsabilidade. O cidadão tem que provar que o acto praticado é ilegal.
3. Na verdade,
4.Tal como reconhece o prof. Freitas do Amaral, " acontece muitas vezes que não é fácil, ou mesmo é impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço público num certo caso concreto.
5. Repare-se que no Direito brasileiro esta situação foi ultrapassada a partir da Constituição Federal de 1946. A responsabilidade objectiva da Administração sucedeu à responsabilidade fundada na culpa( vide LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 8ª edição, S. Paulo, 1981, p. 619 e segs).
6. Em Portugal, a responsabilidade da administração fundada na culpa não foi substituída, mas sim foi acrescida pela responsabilidade não fundada na culpa, i.é, a objectiva.
7. Portugal fê-lo através do decreto-Lei 48051, portanto uma lei específica.
8. Proponho que seja revisto o artigo 58º da Constituição. Penso que o legislador podia acrescer o nº 3 e teriamos o seguinte cenário ( um hipotético nº 3 do artigo 58º, portanto): O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou culpa das vítimas ou de terceiro, sendo neste caso a responsabilidade determinada segundo o grau de cada um.
9. Assim,
10. Constituiriam fonte de responsabilidade objectiva fundada no risco(uma situação em que o Estado assumiria a responsabilidade pelo risco justamente pelo facto de colocar engenhos explosivos em locais habitados, etc), casos como os seguintes:
9.1. Danos causados por manobras, exercícios ou treinos com armas de fogo por parte das Forças Armadas ou das forças de polícia;
9.2. Danos causados pela explosão de paióis militares ou de centrais nucleares;
9.3. Danos causados involuntariamente por agentes da polícia em operações de manutenção da ordem pública ou de captura de criminosos( aqui podemos enquadrar a famosas balas perdidas).
10. A revisão do artigo 58º deverá ter reflexos a nível da Lei n 9/2001, de 7 de Julho ( Lei do Processo Administrativo e Contencioso) , concretamente na parte relativa ao contencioso por atribuição.
11. No que diz respeito ao paiol de Malhazine, penso que em Moçambique há normas que devem ser observadas para a conservação do material bélico alí aemazenado e, se os agentes do Estado obrigados a respeitar tais normas não o fizeram, portanto, omitindo voluntariamente o seu cumprimento, então nos termos do artigo 58 da Constituição, penso que há lugar a reponsabilidade do Estado por actos dos seus agentes. Mesmo assim, insisto na necessidade de consagrarmos no nosso ordenamento a teoria da responsabilidade extracontratual do Estado fundada no risco. Isto permitirá cobrir, no futuro, situações de explosões de paiois militares independentes de culpa de determinado agente.
6 comentários:
O Dr. Cistac também fez menção no telejornal da STV ao facto de a Alta Autoridade da Função Pública, ter que estar subordinada a algum ministério porque no cenário actual é ilegal.
Caro ninozaza, estou a estudar o assunto. Já conversei com o Prof. Cistac sobre este assunto.
interessante. mas, ilídio, diga-me uma coisa: porque seria difícil provar a ilegalidade de um acto de um agente do estado? não sei se percebo bem. se um acto de corrupção - para pegar um exemplo que todos vão perceber - priva os hospitais de equipamento necessário a qualquer coisa importante, é difícil provar isso mesmo se houver tribunal a culpar alguém de corrupção? e será mesmo verdade que fora dessa cláusula a nossa constituição é silenciosa em relação à responsabilidade do estado pelo que faz? a ser isso verdade, já estão explicadas muitas coisas.
Interassante questão., caro elísio. O artigo 58º, refere que o facto gerador da responsabilidade do Estado é o acto ilegal do seu agente. Ora, isto pressupõe que haja culpa. Imagine-se, tal como disse o Prof. Cistac, uma situação duma bala perdida disparada no âmbito de manutenção da ordem e tranquilidade públicas, será o acto ilegal? Penso que não. Se alterarmos o artigo 58º da Constituição e, acrescermos uma responsabilidade do Estado que independa das sua culpa, aí cobriremos este tipo de situações. No caso concreto do paiol, penso que à luz do artigo 58ºé possível responsabilizar o Estado, pois há normas internacionais para conservação daquele tipo de engenhos, que, quanto a mim não foram observadas. (Não investiguei, mas penso que Moçambique está obrigado a tal). Se tiver ractificado, logo nos termos do artigo 18 da Constituição, fica claro que fica adstrito à sua observância na ordem interna. Não o tendo feito, logo há ilegalidade, o que obriga o Estado a indemnizar as vítimas. Portanto, pra mim e salvo douto entendimento em contrário,há lugar a responsabilidade do estado. A despeito disso, temos que ter na ordem interna uma disposição que obrigue o Estado a indemnizar nos casos em que não tenha culpa. Falo, repito, do caso das balas perdidas. Repare que nestas situações, as expressões que tem sido usads são: apoio, ajuda,etc, etc, dificilmente se fala em indemnização. Bom debate este, caro elísio.
bom debate, concordo, por isso gostava de insistir. o que torna o estado responsável no caso do paiol e em referência às normas internacionais? a ilegalidade de não observar essas normas ou o desleixo? a bala perdida não decorre de um mau trabalho (que no limite pode ser considerado "ilegal"?)da polícia? isto é, há normas para o desempenho do trabalho policial e não gostaria de constatar que, afinal, no nosso país existe um vazio jurídico completo em relação aos danos que o estado possa por ventura causar ao cidadão no cumprimento dos seus deveres. será isso mesmo? e seria por isso que é necessária essa responsabilização jurídica?
Isso, caro elísio!Boa insistência. Repare, o desleixo de que se refere, fere tais normas a que o Estado está adstrito a respeitar. Logo há ilegalidade. Tais normas não permitem o desleixo, a negligência( omissão volunt´+aria de um dever). Há procedimentos que devem ser observados e o Estado omite voluntariamente o acto de os observar, logo esse comportamento omissivo consubstancia uma ilegalidade, e, nos termos do artigo 58 terá que responsabilizar as vítimas. No que tange as balas perdidas, estas situações devem ser analisadas causisticamente.Acredito que casos há em que a Polícia não é suficientemente diligente no âmbito das operações de manutenção da ordem e tranquilidade públicas. Reconheça-se. Nesses casos, o chamamento do Estado à responsabilidade parece-me pacífico.Caro, elísio, existe sim um vazio no que toca a responsabilidade do Estado por actos de gestão pública. Em 1919, na França, explodiu um paiol militar, como a França já tinha consagrado a teoria do risco, ou seja a responsabilidade extracontratual do Estado pelo risco, o Estado Francês teve que ser chamado à responsabilidade. A terra do rei Pelé ultrapassou esta questão em 1946, Portugal, em 1967. Moçambique continua na responsabilidade do Estado por actos ilegais. E se acto for legal, mas haver risco decorrente da actividade exercida pelo agente do Estado?Quid juris? É por isso que insisto na revisão do artigo 58º da Constituição e, por conseguinte tal terá impacto no âmbito da Lei do Processo Administrativo e Contencioso, al lei 9/2001, de 7 de Julho.
Enviar um comentário