terça-feira, novembro 20, 2007

SOBRE A ALTERAÇÃO PONTUAL DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

Para permitir o adiamento da data da realização das eleições para Assembleias Provinciais, a bancada parlamentar da Frelimo apresentou, em 22 de Outubro de 2007, uma proposta para alteração pontual da Constituição da República. A iniciativa da bancada parlamentar da Frelimo foi acolhida pela bancada da oposição, que, como se viu, não impediu que a proposta passasse.
Ora, para que a alteração da Constituição da República ocorresse, impunha-se, nos termos do artigo 293.º da própria Constituição, que houvesse uma deliberação de assunção de poderes extraordinários de revisão, aprovada por maioria de três quartos de deputados da Assembleia da República, facto este que aconteceu sem sobressaltos. Porque a assunção de poderes extraordinários de revisão já tinha ocorrido, então procedeu-se a aprovação da emenda constitucional, que permitirá a alteração da data da realização das eleições. No entanto, é realmente questionável a actuação da Assembleia da República. É que o nº 2 do artigo 291.º da Constituição da República estabelece que "As propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até noventa dias antes do início do debate"( o destaque é meu). Ou seja, o debate inicia 90 dias depois da apresentação das propostas de alteração.
Entretanto, o deputado Máximo Dias, da bancada parlamentar da Renamo-UE, entrevistado hoje pela STV, no programa Opinião Pública, disse que a Assembleia da República não violou a Constituição, porque o nº 2 do artigo 291.º não é aplicável às situações de alteração resultante de assunção de poderes extraordinários de revisão ( citei de memória). Ou seja, que nestes casos não é exigível o cumprimento de prazos- estava a interpretar o raciocínio de Máximo Dias- Ora, com todo o respeito pelo ilustre deputado Máximo Dias, que até é muito, distancio-me da opinião por ele emitida. É que, sem muito esforço, se constata que a Constituição foi na verdade deliberadamente "pontapeada". Há uma inconstitucionalidade material da lei de revisão pontual da Constituição. Foi elaborada sem observância dos pressupostos constitucionalmente estabelecidos, ou seja, o debate iniciou uma, duas ou tês semanas após o depósito da proposta da alteração, quando, nos termos da Constituição, o mesmo devia ter iniciado 90 dias depois. O ilustre deputado Máximo Dias fez uma distinção entre o "processo de revisão normal" e o "processo de revisão pontual" ( o que resulta da assunção de poderes extraordinários). Na verdade, é lição básica de hermenêutica: onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo. Se se não pretendesse fazer depender a alteração resultante de assunção de poderes extraordinários da observância do prazo, neste caso o de 90 dias, certamente que o legislador constituinte se teria pronunciado. Ademais, o prazo de 90 dias constante do nº 2, do artigo 291 da Constituição, é de capital importância pois visa permitir que haja espaço suficiente para análise, pelos deputados, da proposta de alteração e que eles tenham tempo razoável, provavelmente, de entrar em contacto com o povo que os elegeu, para análise da disposição ou disposições constitucionais que se pretendem ver alteradas, mesmo naquelas situações de assunção de poderes extraordinários. Ora, sendo válida a opinião do Dr. Máximo Dias, o que não se concede, então estamos muito mal. Significa que a Constituição pode ser alterada a bel talante dos deputados, sem cumprimento de nenhum prazo, sem estudo prévio da proposta de alteração, ou seja tudo feito a correr... E, é necessário que se tenha em mente que não estamos a falar de alteração dum decreto ou de uma postura municipal, ou de um despacho. Estamos a falar de alteração de disposições constitucionais.
Consta que o Presidente da República já promulgou a lei que altera a Constituição da República. Significa que dois altos órgãos do Estado moçambicano violaram deliberada e conscientemente a Constituição, nomeadamente o Presidente da República, (que até é o garante da Constituição nos termos do que dispõe o nº 2 do artigo 146.º da Constituição) e a Assembleia da República.
Bom, neste momento o que fazer? Em termos práticos, nada a fazer. É que os órgãos que nos termos do artigo 245.º da Constituição tem a faculdade de solicitar a declaração de inconstitucionalidade certamente não o farão. E penso que as razões devem ser por todos nós conhecidas. Repare-se que não estou contra o adiamento das data da realização das eleições, estou e isso sim, contra a violação da Constituição da República, a lei fundamental do Estado. Ninguém tem o direito de optar entre cumprir e não cumprir. Ela simplesmente deve ser cumprida. Mas enfim... esperemos então que 2000 cidadãos solicitem a declaração de inconstitucionalidade. Esperemos...

24 comentários:

Unknown disse...

bem, estamos no país dos improvisos, em que não se olham a meios pra alcançarem-se os objectivos pretendidos.
repare-se só para o caso do Ministro Namburete que, deliberadamente, ignora o parecer desfavorável de uma organização ambiental, para a construção de uma barragem, pois o referido Ministro, diz que avançar-se-á, independente de qualquer estudo de impacto ambiental, ferindo-se deste modo, uma disposição legal, no sentido de se ter em conta, tais estudos.

ilídio macia disse...

Enfim...

Elísio Macamo disse...

ilídio, excelente análise, parabéns! é longo o caminho que ainda temos que percorrer para chegar ao estado de direito. é bom ter guias como tu.

ilídio macia disse...

Muito grato, caro Elísio. De facto o caminho rumo ao Estado de Direito é muito longo e lamacento.

Patricio Langa disse...

Ilidio.
Brilhante análise.
Texto clarividente e didáctico.
Repito, é deste tipo de atitude crítica que o nosso país precisa.
A diferença está na qualidade.
Abraço.

ilídio macia disse...

Obrigado caro Patrício!

chapa100 disse...

ilidio! os dois mil cidadaos podiam ser inspirados pela exercicio de cidadania que podemos exigir da sociedade civil - essa que se aventurou para a CNE -. o que assusta é o fenomeno de atropelos constitucionais que temos assitido durante os ultimos anos, que acima de tudo enfraquece a presidencia da republica como guardia da constitucionalidade. outro ponto que chama atencao neste processo de alteracao da constituicao, é a pressa com que este processo tomou. se bem que a proposta da bancada parlamentar da frelimo é resultado dos varios protestos e opinioes da sociedade civil - academicos, religiosos, intelectuais, etc - (segundo o comunicado que acompanha a proposta) nao vi durante este processo de estudo ou de discussao da proposta na AR qualquer iniciativa politica das duas bancadas la presentes em recolher evidencias e registar essas opinioes-discussoes publicas que forcaram a classe politica para a alteracao do prossuposto constiticional. e parece que esses grupos de pressao que funcionaram na pressao para a alteracao consttitucional sao grupos organizados ou individualizados e identificados na esfera publica. como diz o patricio langa nao estamos perante um exercicio "senso comum para o eclipse da razao"? ou foi mais um exercicio ´que legitima o espaco publico como espaco de negociacao para mostrar quao somos uma sociedade aberta?

Unknown disse...

Caro ilídio,

Artigo didáctico. As minhas congratulações. Contudo não podia deixar de comentar, acrescentando, o seguinte extracto do seu artigo:” Na verdade, é lição básica de hermenêutica: onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo.” Será que este princípio de interpretação é infinitamente aplicavél? Ou contempla algumas excepções? É que, quer me parecer que ele é tendencialmente válido no âmbito do Direito Público (onde se encaixa o seu artigo, e aí, concordo plenamente consigo), já que no direito privado, o que o legislador não proíbe, em princípio, é permitido. O principal argumento sobre qual assenta esta premissa, reside no facto do direito regular essencialmente o minímo ético, onde o grau de liberdade de interpretação é muito menor (ou inexistente) no direito público que no privado.

JJM

ilídio macia disse...

Caro colega e amigo Mutisse, estou plenamente de acordo contigo.

Júlio Mutisse disse...

Ilustre Macia,

Esta é a minha primeira entrada nos comentários a este post. JJM não é JSM (Júlio Serafim Mutisse).

Eu também estou curioso em saber quem é JJM.

Quanto à inconstitucionalidade da alteração pontual da CRM não estou certo da rigidez do nº 2 do art. 292º. A interpretação literal do dispositivo constitucional leva à tal rigidez. Mas, meu caro Ilídio será que, neste assunto devemos cingir-nos à letra para interpretar a CRM?

Segundo o Professor Jorge Miranda, uma das grandes dificuldades na interpretação da constituição resulta da "proximidade dos factos políticos e a «rebeldia» destes perante a os quadros puramente lógicos da hermeneutica" (direito constitucional II pp 255).

A interpretação constitucional (que segundo Jorge Miranda não difere da que se opera noutras áreas obcit pp 257) destina-se à conformação da vida pela norma e deve ter em conta "os condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis, mas não pode visar outra coisa que não sejam os preceitos e princúipios jurídicos que lhes correspondem." (pp 257)

Portanto meu caro Ilídio, em face disto, tenho medo de ZARPAR contigo para a afirmação da inconstitucionalidade (sem embora a descartar). Precisamos ir um pouco mais além da letra da Lei para compreender o exercício feito e emitir um juizo de valor.

Unknown disse...

Não seja por isso caro Mutisse. JJM=Josué José Muchanga

Bayano Valy disse...

Ilídio,
Venho juntar a minha voz e endereçá-lo os meus parabéns pelo lindo artigo. Não há dúvidas que na ânsia de se corrigir os erros anteriores cometeu-se um maior. Mas fica-me sempre uma pergunta no ar: este foi um precedente ou foi apenas uma erro de percurso habilmente disfarçado em poderes extraordinários?

ilídio macia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ilídio macia disse...

Caro Mutisse, muito obrigado pelo comentário. Na verdade, os preceitos constitucionais devem ser interpretados não só no que explicitamente ostentam como também no que implicitamente deles resulta.E o que resulta do artigo do nº 2 do artigo 291 da Constituição, caro Mutisse? Ademais, todas normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser, assim ensina o ilustre Prof. Jorge Miranda, por si, caro Mutisse, também citado. Para mim, retirou-se ou diminuiu-se a razão de ser do nº 2 do artigo 291 da Constituição, o que não se deve permitir.Mais: segundo o Prof. Jorge Miranda a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; Interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição.

Martin de Sousa disse...

A interpretação constitucional (que segundo Jorge Miranda não difere da que se opera noutras áreas obcit pp 257) destina-se à conformação da vida pela norma e deve ter em conta "os condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis, mas não pode visar outra coisa que não sejam os preceitos e princúipios jurídicos que lhes correspondem." (pp 257)

Foi ou não tido em conta o fim político da norma em debate?

Elísio Macamo disse...

acho o vosso debate fascinante. espanta-me que não tenhamos mais debates desta natureza no nosso país. gostava, contudo, de vos provocar com a seguinte pergunta: se esse tal jorge miranda não tivesse existido, ou melhor ainda, se ninguém tivesse escrito qualquer manual que fosse sobre a interpretação da constituição, como é que cada um de vocês iria fundamentar qualquer tipo de interpretação da constituição? essa parece-me ser uma pergunta muito importante que corre o risco de desaparecer da discussão. afinal, o objectivo é ter uma fundamentação nossa, e não apenas fazer recurso a argumento de autoridade.

ilídio macia disse...

Caro elísio, boa provocação. Na verdade, na minha postagem procurei interpretar a constituição sem apoio de argumentos de autoridade. O Mutisse foi quem "chamou" Jorge Miranda. Penso que o Mutisse deve me estar a "ouvir" neste momento e, de certeza reagirá! Mutisse, estou a sua espera...

Júlio Mutisse disse...

Meus caros Elísio e Ilídio,



É realmente importante ter uma argumentação "NOSSA." Mas toda a ciência tem os seus princípios básicos. Portanto, é importante que essa "NOSSA" argumentação encaixe nesses princípios gerais.



A argumentação do Ilídio está dentro dos princípios gerais sobre a interpretação legislativa embora não cubra todos. Em minha opinião, a argumentação do Macie peca por se ter cingido à letra da lei.





De facto, a interpretação constitucional não difere da que se opera noutras áreas (deve não cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento do legislador e atender às circunstâncias específicas do tempo em que a lei é aplicada); porém, a constituição tem as suas particularidades. E uma delas (derivada do seu cunho político ou politizado) é a proximidade com factos políticos que o intérprete deve ter em conta sempre (a tal rebeldia» dos factos políticos perante os quadros puramente lógicos da hermeneutica a que alude Jorge Miranda). É isso que eu chamo atenção ao Ilídio.



Chamar o Jorge Miranda foi um corta mato para chegar MAIS RAPIDAMENTE ao Ilídio. Foi dessa fonte que ambos bebemos em termos de ciência do direito Constitucional.



O Ilídio acha que retirou-se ou diminuiu-se a razão de ser do nº 2 do artigo 291 da Constituição, o que não se deve permitir. Eu também acho que não se devem permitir atropelos porém, neste caso, acho que não é bem assim atendendo às condições específicas do tempo em que a Constituição foi emendada.



Pela letra da lei (que não deve ser o único ponto de interpretação)chegamos facilmente a esta conclusão de atropelo. Desconheço o pensamento do legislador, conhecemos as circunstâncias em que a CRM foi elaborada, temos os DADOS DAS CONDIÇÕES ESPECÍFICAS EM QUE ESTÁ A SER APLICADA e conhecemos "os condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis" que estiveram na sua origem. Isso deve nos permitir dar o salto para uma conclusão diferente do ATROPELO da constituição.

Júlio Serafim Mutisse

ilídio macia disse...

Caro Mutisse, qua´l é o espírito do nº 2 do artigo 291. Sejamos directos!! Sabe, nem é necessário estudar Direito Constitucional para perceber que o nº 2 do artigo 291 foi pontapeado.

Júlio Mutisse disse...

Caro Macie,

Se em termos interpretativos do dispositivo constitucional do art. 291 nos determos unicamente na afirmação de que "as propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até 90 dias antes do início do debate" não hajam dúvidas : a CRM foi pontapeada que nem o XINGUFO que jogamos na nossa infância.

Se interpretativamente à leitura do dispositivo constitucional em causa atendermos (como nos permitem os princípios interpretativos das normas legais/constitucionais) as CONDIÇÕES ESPECÍFICAS EM QUE a CRM foi emendada e o conhecimento que temos dos "condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis" que estiveram na sua origem chegará, de certeza, a uma conclusão diversa.

My point is, temos instrumentos que nos permitem ver a mesma realidade de outros ângulos e com resultados diferentes. Experimentemos esses ângulos.

Pela sua resposta ao meu post anterior, deduzo que recusa sair do que está escrito no nº 2 do art. 291 para considerar por exemplo, as circunstâncias em que a norma foi elaborada e as circunstâncias em que está a ser aplicada. Mais, está a recusar a influência dos factos políticos num instrumento de grande punho político embora jurídico.

Talvez me pergunte que "condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis" devem ser tidos em conta na interpretação/aceitação dos moldes em que a constituição foi emendada eu (sem receios) diria: a defesa da democracia. Podemos elaborar um pouco sobre isto mas por ora basta.

JSM

ilídio macia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ilídio macia disse...

Sua frase esta, caro Mutisse:Se interpretativamente à leitura do dispositivo constitucional em causa atendermos (como nos permitem os princípios interpretativos das normas legais/constitucionais) as CONDIÇÕES ESPECÍFICAS EM QUE a CRM foi emendada e o conhecimento que temos dos "condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis" que estiveram na sua origem chegará, de certeza, a uma conclusão diversa." Bom, caro Mutisse, estou a ver que sendo este o raciocínio, sobretudo em relação ao nº 2 do artigo 291, então eu preferia que este artigo não tivesse sido escrito...apanhas a minha piada? Mas já agora, caro Mutisse, interprete-nos a disposição em causa, por favor!

Júlio Mutisse disse...

O nº 2 do art. 291 faz todo o sentido. Interpretando-o LITERALMENTE sem ter em conta mais nada, não hajam dúvidas... a CRM foi REMATADA que nem xingufo. Tens toda a razão quando chegas a tal conclusão.

Mas se aceitares o desafio de ao texto da lei que impõe tal limite, admitires que o dispositivo pode ser lido diferentemente (porque ao admitir-se a emenda da CRM era para viabilizar o país "livrando-o" de normas que em determinado momento possam não ser consentâneas com o rumo que se pretende trilhar) através da admissão de outros critérios interpretativos que flexibilizem a norma, então o resultado vai divergir do que apresenta aqui.

É o circunstancialismo do momento que a CRM foi emendada que ditou o afastamento da rigidez do nº 2 do art. 291. Isto é, no momento da emenda (creio) para os deputados para além do texto do nº 2 do art. 291 atenderam as circunstâncias do momento e os "condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis" que a interpretação das normas constitucionais permite e ZÁS...

Não podemos fechar os olhos a isto.

Repito. Se nos determos SÓ no texto do nº 2 TENS TODA A RAZÃO.

Elísio Macamo disse...

caros ilídio e júlio, parabéns pela vossa discussão. é isto que eu estava a pedir. quando falei de "nossa" não me referia a uma interpretação "moçambicana", mas sim a um posicionamento nosso (individual ou em grupo) em relação à matéria. tinha ficado com a impressão de que estivessem satisfeitos em apenas citar o tal miranda. só isso. outra maneira de expor a minha preocupação é de dizer que queria saber porque vocês acham que a leitura desse indivíduo citado satisfaz o cânone.